Um passeio pela história da canção brasileira, em nuances de tirar o fôlego. A cantora portuguesa Cuca Roseta, uma das maiores fadistas de sua geração, lança este mês o décimo álbum de carreira, totalmente dedicado à música brasileira. “Até a fé se esqueceu” resgata pérolas do cancioneiro nacional e apresenta também uma safra recente de composições, formando um arco cronológico que começa em 1937 e termina em 2024. O álbum chega às plataformas de streaming no próximo dia 11, idealizado e produzido por João Mário Linhares para o selo MP,B / Som Livre. A artista fará uma minitemporada de shows no Brasil, com início no fim de abril, em cidades que em breve serão anunciadas.
Cuca não precisa de licença para se aventurar por terras brasileiras. Com 15 anos de carreira musical, já foi parceira de Ivan Lins, gravou com Djavan, cantou com Pierre Aderne e foi produzida por Nelson Motta. Mas agora é diferente: o álbum “Até a fé se esqueceu” é 100% dedicado à música feita no Brasil, seja no repertório ou mesmo nos músicos e cantores que embarcaram com ela nessa jornada.
O repertório foi escolhido a dedo. “Escolhemos grandes compositores e poetas e demos toda a atenção à palavra. É uma declamação de poesia cantada, uma história que vem do coração. Ela só ganha asas se for cantada pela voz da alma. Também no fado português colocamos nosso ego de lado e nos entregamos a cada palavra como se nela coubesse todo o mundo”, afirma Cuca.
Lançado por Aracy de Almeida em 1946 como um lado B, o samba-canção “Saia do caminho”, com melodia de Custódio Mesquita e letra confessional e sofrida de Evaldo Ruy, foi gravado por uma constelação de cantoras brasileiras: Dalva de Oliveira, Zezé Gonzaga, Gal Costa, Nana Caymmi, Ângela Maria, Elza Soares, Rosa Passos, Olivia Byington, Verônica Sabino, Marisa Gata Mansa, Eliana Pittman e tantas outras, para não falar da mais marcante, Miúcha, com o piano de Tom Jobim.
Por isso, gravar “Saia do caminho” é quase um “olá, estou chegando” de Cuca Roseta para apresentar o novo trabalho. A faixa representa o glorioso período do samba-canção – em termos conceituais e temáticos, não muito diferente dos dramáticos fados portugueses, também sobre desamores. Mas na delicada regravação de Cuca, ele é reinventado: em vez do piano jobiniano, o samba-canção é todo conduzido pelo acordeão de Marcelo Caldi, que fez um arranjo inédito para uma canção já gravada de tudo quanto é jeito.
Já em “Sem você” (1958), de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, que aqui representa a linhagem das canções “camerísticas” brasileiras, a cantora palmilha a canção num registro cool, quase bossa-novista, sem qualquer perda de intensidade em sua interpretação. Em alguns momentos até chega a sutis vibratos dramáticos do fado. É uma aula de música luso-brasileira, um diálogo entre seus dois estilos básicos.
O passeio pela música brasileira traz dueto de Cuca e Zeca Pagodinho numa clássica seresta, aqui sim levada em espírito de fado: “Arranha-céu” (1937), de Silvio Caldas e Orestes Barbosa. Nela, o arranjador Marcelo Caldi mistura um piano moderno com um acordeão nostálgico, como se a reunisse “Saia do caminho” e “Sem você”, numa trilogia de canções de (des)amor.
Já Zeca Pagodinho, um sambista brasileiro com insuspeitada alma seresteira e mestre em revisitar o cancioneiro brasileiro do passado, faz uma participação digna de antologia nesta faixa. O dueto Cuca Roseta e Zeca Pagodinho, em si, já diz ao que veio um álbum que pretende misturar as duas culturas musicais irmãs.
“Zeca Pagodinho é o Rei, assim o chamamos aqui em Portugal. Cantar com ele é inacreditável, principalmente Silvio Caldas, algo tão profundo e triste. Presenciar Zeca contando essa história comigo é uma emoção única”, revela a cantora.
Comentários (0)
Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião desta página, se achar algo que viole os termos de uso, denuncie.
Comentar